"Região NorteFerida aberta pelo progressoSugada pelos sulistasE amputada pela consciência nacional
(.)
A culpa é da mentalidadeCriada sobre a regiãoPor que que tanta gente teme?
Norte não é com MNossos índios não comem ninguém
Agora é só hambúrgerPor que ninguém nos leva a sério?Só o nosso minério
E quem quiser venha verMas só um de cada vezNão queremos nossos jacarésTropeçando em vocêsOh, não!"
(Belém-Pará-Brasil - Mosaico de Ravena)
A música regional datada de 1992 reflete uma realidade do Norte do país, pouco se conhece e muito se opina. Assim, em fevereiro de 2024, após uma apresentação em um reality musical, a situação de crianças e adolescentes do Arquipélago do Marajó, no Estado do Pará, veio novamente à mídia1, mas a grave situação não é novidade para a mídia local2 e até internacional3.
Desde o ano de 2016, tanto a autoridade policial de Melgaço-PA, como o Ministério Público do Trabalho (MPT) e a Justiça do Trabalho já constataram que havia o ingresso de crianças e adolescentes em embarcações que transitavam no furo Tajapuru para serem submetidas para atuar no trabalho infantil de venda de produtos extrativistas da região, bem como à exploração sexual de menores de idade e prostituição de maiores, em troca de obtenção de dinheiro e bens em geral, como óleo diesel4, tudo fruto da situação de extrema vulnerabilidade da população local, especialmente de suas crianças e adolescentes5, o que rendeu a condenação de uma das empresas ao pagamento de dano moral coletivo6.
Não se tratando de uma situação nova, portanto, não se pode alegar que seja desconhecida das autoridades públicas, o que interessa saber é por que até hoje ainda convivemos com denúncias a respeito da exploração sexual de crianças e adolescentes de crianças e adolescentes na região?
Para melhor compreender a questão, é necessário mais do que se fazer uma contextualização, é indispensável prestigiar o olhar de quem convive e conhece a situação, para compreender a complexidade local, em detrimento de se adotar uma visão meramente abstrata do que seja o problema, donde, não raro, costumam surgir respostas igualmente não contextualizadas como solução.
A Amazônia legal brasileira, enquanto espaço geopolítico, está localizada, em sua maioria, na região Norte do país e além da sua exuberante floresta, com vasta fauna, flora, rios, furos e igarapés, é habitada por indígenas, extrativistas, pescadores, fazendeiros, mulheres, LGBTQIA+7, negros, católicos, evangélicos, afrorreligiosos, coletores, imigrantes, migrantes, posseiros, colonos, agricultores rurais, barqueiros, madeireiros, palmiteiros, açaizeiros, universitários, descendentes de indígenas e africanos, entre outros, sendo a heterogeneidade cultural uma das principais características deste espaço. (SILVA, 2013)8.
Cada um desses indivíduos e sua comunidade são formados por uma identidade sociocultural e política próprias, tendo seus modelos de vida, de sobrevivência e de organização político-social pautadas na origem étnica, por meio da adoção e adaptação de saberes e técnicas, de acordo com suas necessidades, no padrão complexo de organização da produção e de gestão dos recursos naturais, na luta pela garantia de sobrevivência e de acesso a bens e serviços sociais e nas atividades exercidas, como: agricultura, caça, pesca, coleta e extração, desempenhadas conforme suas necessidades e recursos naturais disponíveis. (CHAVES; LIRA, 2009)9.
A presença predominante dos povos indígenas, africanos e migrantes nordestinos, somados aos colonizadores portugueses, retrata a grande amálgama responsável pelo mosaico humano formador dos povos que ora habitam as "Amazônias" como a Amazônia Paraense, em especial as comunidades que margeiam o furo Tajapuru, no município de Melgaço, Pará, Brasil.
Essas pessoas possuem uma identidade coletiva singular, com organização política e modo de viver próprios, pautados em valores socioculturais, constituídos a partir da formação histórica e miscigenação na região amazônica, forjada na resistência, por sua cultura e pelo território dos povos indígenas, após a invasão e colonização portuguesa, agregada à introdução dos povos africanos, escravizados para a exploração da economia pecuária, em decorrência da segunda explosão econômica e, mais adiante, no terceiro e quarto ciclo, com migração, principalmente, de nordestinos, para a extração da borracha, combinação que, juntamente com portugueses, proporcionou o surgimento da cultura cabocla, entre as quais se encontra os ribeirinhos. (CHAVES; LIRA, 2016)10.
Os ribeirinhos foram reconhecidos como populações tradicionais a partir do Decreto Presidencial nº 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) que incluiu, além dos quilombolas e indígenas, comunidades de "fundo de pasto", faxinaleiros, pantaneiros, caiçaras (pescadores do mar), ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu, entre outros.
Assim, iniciativas midiáticas não colaboram para uma profunda compreensão do tema e com um efetivo compromisso com sua erradicação, na medida em que, essas crianças e adolescentes, submetidas à exploração sexual sob as águas do furo Tajapuru, são ribeirinhas, existindo, portanto, recortes de gênero, étnico, racial e social indispensáveis para a sua reflexão.
Afinal, esses elementos ajudam a explicar porque, mesmo as famílias vivendo em um estado de extrema vulnerabilidade, esquecidas pelo Estado e desprotegidas das garantias de direitos humanos, há uma naturalização da conduta dos infratores e culpabilização das vítimas, esquivando-se assim de encará-lo a partir do machismo e racismo estruturais e das dificuldades socioeconômicas impostas a tais comunidades, como o fato de se tratarem de crianças e adolescentes do sexo feminino racializadas (ribeirinhas), aliados à extensão territorial, às dificuldades de acesso - apenas por rios, furos e igarapés -, e a precariedade de serviços básicos como saúde, educação saneamento básico e fornecimento de energia elétrica, sem contar a questão da falta de geração de emprego e renda. Prejudicando, com isso, o seu efetivo enfrentamento, com respeito à cidadania plena da população ribeirinha e implementando-se políticas públicas que observem, em todas as suas fases, os saberes da Amazônia, condizentes com o seu desenvolvimento sustentável11.
Além disso, de acordo com a Convenção nº 182, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, a utilização, a demanda e a oferta de criança para fins de prostituição12, produção de pornografia ou atuações pornográficas classifica-se como uma das piores formas de trabalho infantil, cabendo ao país elaborar e implementar programas de ação para eliminar, como prioridade, as piores formas de trabalho infantil.
Em 17 de maio de 2023, a Portaria n. 292 criou o Programa Cidadania Marajó13, que tem o desafio desenvolver ações para o enfrentamento de violências contra crianças e adolescentes no Arquipélago do Marajó, o que inclui o enfrentamento à exploração sexual, pelo Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), tendo entre seus objetivos, o diálogo e a participação social com representantes da sociedade civil, comunidades locais e do poder público local para, segundo o documento, formular políticas públicas culturalmente adequadas, o que levou a criação do Fórum Permanente da Sociedade Civil do Marajó pela Portaria n. 450, de 03/08/2023.
Depois das denúncias, o MDHC anunciou diversas medidas na região14, oriundas do Programa, com destaque para a implementação da Escola de Conselhos no Pará, que visa capacitar os conselheiros tutelares e os conselheiros de direitos do Marajó, além de outros atores do Sistema de Garantia de Direitos, em parceria com a Universidade Federal do Pará (UFPA), tratativas para a implementação de 02 Centros de Atendimento Integrados de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violências, além de medidas na área da saúde e educação.
Essas medidas são louváveis, mas ainda é necessário avançar, com a efetivação das propostas apresentadas pelas comunidades locais, a partir das atividades do Fórum e com a apresentação de projetos no âmbito da geração de emprego e renda, consentâneos com os saberes locais, colaborando para a emancipação daquela população de forma concreta e cidadã, o que, assim, contribuirá para a erradicação da exploração sexual de crianças e adolescentes daquela localidade.
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1 Disponível aqui. Acesso em 25/03/2024.
2 Disponível aqui. Acesso em 12/04/2024.
3 Disponível aqui. Acesso em 12/04/2024.
4 Diante da seu preço e raridade, é considerado o ouro negro local.
5 A autoridade policial de Melgaço-PA deflagrou Inquérito Policial, após ter detectado, no local, diversas "canoas" atracadas à embarcação e vários menores de idade circulando em seu interior, contudo, antes da entrada dos policiais, a tripulação - percebendo a aproximação da lancha da Polícia Civil - começou a desatracar as canoas. A polícia, ao adentrar na embarcação, encontrou duas garotas escondidas embaixo de um dos caminhões transportados, uma menina de 11 (onze) anos de idade e a outra com 18 anos. E, pelas circunstâncias e provas encontradas, a exemplo de uma sacola contendo "camisinhas", de posse da maior de idade, bem como pelos depoimentos prestados durante o Inquérito, ficou claro que a presença das crianças e adolescentes na embarcação não se limitava ao trabalho infantil de venda de produtos extrativistas da região, mas a obtenção de dinheiro e bens em geral, como óleo diesel, mediante exploração sexual de menores de idade e prostituição de maiores, consequência da situação de extrema vulnerabilidade da população local, especialmente de suas crianças e adolescentes. Além dos ribeirinhos, foram encontrados dezenas de caminhoneiros acompanhados de seus respectivos veículos, o que é vedado pelas normas de transporte fluvial, e que o flagrante gerou uma reportagem produzida e divulgada pela TV Aparecida, cujas imagens e vídeos deixavam claro o cometimento de diversas infrações trabalhistas e criminais.
6 A liminar foi concedida em 08 de abril de 2016. A sentença de conhecimento foi proferida, em 02 de março de 2017, ocasião em que concedeu, em definitivo, a liminar e, no mérito, julgou procedente os pedidos da ação civil pública, condenando a empresa ré na obrigação de fazer, nos moldes pleiteados, na Petição Inicial, e ainda ao pagamento do dano moral coletivo de R$500.000,00, a ser revertido à comunidade local, a critério do Órgão Ministerial. Após o trânsito em julgado, o processo entrou em fase de execução, mas até o momento não houve a materialização do que foi deferido na sentença.
7 Movimento político e social que defende a diversidade e busca mais representatividade e direitos para a comunidade, sendo que suas siglas significam: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexos, Assexuais e outros grupos e variações de sexualidade e gênero, como pansexuais. Acesso em: 12 de abril de 2024.
8 SILVA, Ana Tereza Reis da. Áreas protegidas, populações tradicionais da amazônia e novos arranjos conservacionistas. Revista Brasileita de Ciências Sociais, v. 34, n. 99, Brasília, DF, 2019.
9 CHAVES, Maria R.; BARROSO, Silvana C.; LIRA, Talita M. Populações tradicionais: manejo dos recursos naturais na Amazônia. Revista Praia vermelha, Rio de Janeiro, v. 19, n. 2, p. 111-122, jul./dez. 2009.
10 Idem.
11 Observando, por exemplo, o Objetivo 16.2 da Agenda 2030 da ONU, que trata expressamente do combate ao abuso, exploração, tráfico e todas as formas de violência e tortura contra crianças.
12 A expressão correta é exploração sexual, por se tratar de crianças e adolescentes.
13 Disponível aqui. Acesso em 12/04/2024.
14 Disponível aqui. Acesso em 12/04/2024.